Os poetas dão-se pelas palavras, os pintores têm nas cores o seu canal, os realizadores resumem num plano a vida inteira, os actores fazem das personagens o meio. E o cantor expressa-se através do seu instrumento: a voz.
Não tenho jeito com as palavras e as cores nunca foram o meu forte. O meu momento mágico era o acto da entrega plena em que os lábios se separavam e os sentimentos fluíam em cada nota. Era a minha forma de comunicar.
A voz é um dom, mas as cordas vocais são um músculo que, como qualquer outro, se não é trabalhado deixa de funcionar em pleno. O "meu dom" está perro. Os agudos fugiram-me e não apareceram novos graves para os substituir.
Nem me apercebi do que estava a acontecer. Deixei apenas de ter sempre uma canção na cabeça e de fazer com ela novas experiências. Deixei de cantar para o mundo, depois parei de o fazer para alguns e por fim esqueci-me de cantar para mim.
Acabaram os instantes de preparação daquela nota difícil, já não se fazem silêncios para me ouvir, (quase) todos desconhecem que tive este sonho e não sabem da dor que veio ao tê-lo deixado. Com ele perdi também a capacidade de me dar.
Só que na vida não há volta atrás e o "meu talento" (se é que lhe posso chamar assim sem ofender alguém) ficou no passado. Deve ter-se apeado nalguma paragem - juntamente com a alegria - e eu, sem me dar conta, segui em frente.